quarta-feira, 23 de maio de 2018

Arte e Ciência: ligações necessárias



THELMA LOPES*

         Arte e Ciência, hoje, podem parecer duas áreas distantes e antagônicas, mas a relação entre as duas, que se subdividem em outras, nem sempre foi de distância. Pintores renascentistas aplicavam princípios matemáticos para conferir ilusão de volume e proporção às imagens, visando retratar a natureza realisticamente. Os médicos, por sua vez, recorriam aos artistas, que, ao registrarem dissecações, como Rembrandt, em “Lição de anatomia”, documentavam o corpo humano gerando fontes de estudo inéditas. Já Escher utilizou a geometria para criar realidade à parte: infinita e fantasiosa. Quando o paradigma dominante passou a ser o científico, Arte e Ciência foram afastadas, especializando métodos, processos e linguagens. Um vocabulário relacionado à Ciência foi incorporado ao cotidiano, por diferentes setores da sociedade, de forma indiscriminada, por vezes deturpada, e outras com fins mercadológicos. O caráter utilitário da Ciência e a concretude do progresso tecnológico contribuíram para que a última passasse a ser encarada como algo inconteste. Como duvidar do “cientificamente comprovado”? Não se trata de dispensar ou banalizar a Ciência, o que por si só seria uma ingenuidade nos dias atuais, face ao consenso generalizado de sua autoridade no âmbito social, a despeito das críticas a tal status dentro da própria Ciência e dos recentes retrocessos.
         Não, a Terra não é plana! Trata-se de legitimar outros saberes. Enquanto Einstein revolucionava a Física e apresentava nova forma de interpretar tempo e espaço, Michel Proust desfigurava o tempo e fazia dele o grande protagonista de sua densa obra “Em busca do tempo perdido”. Se Einstein desvelava que o tempo não era absoluto, como postulou Newton, revelando assim um amplo universo de possibilidades temporais, paralelamente, o autor francês demonstrava como o tempo é relativo e quantos universos podem caber em um adocicado pedaço de madeleine. Proust relacionou tempo, memória e afetos. Estudos posteriores comprovaram que olfato e paladar são os únicos sentidos que se ligam diretamente ao hipocampo, o centro da memória. O escritor pressentiu tais ligações e explorou cheiro e gosto do típico bolo francês para reviver sua infância. Proust se antecipou à Ciência. E foi além. Ao falar de uma memória na qual selecionamos aquilo que gostaríamos de recordar para embelezar nossas lembranças, o autor sublinha a importância do esquecimento. Daí a ideia proustiana de que só se vive plenamente na memória. Não fosse a capacidade de esquecer, como poderíamos seguir adiante depois que um grande amor se vai? Como ser feliz sem saber esquecer as dores do corpo e da alma? Manter a memória viva é tão importante quanto saber esquecer: isso também nos diz Proust.
         Embora haja longo caminho a percorrer são crescentes as iniciativas de reconciliação entre Arte e Ciência. No Brasil e exterior, como na prestigiada Universidade de Harvard. Destaca-se a criação do termo “ArtScience”, que ao aglutinar os dois campos nos convida a novas interpretações. No entanto, ainda é preciso fortalecer o entrelaçamento de saberes, principalmente em contextos como o nosso.  O Brasil é um país onde o abismo social é profundo. E desse fosso, que também é cultural, emergem desigualdades que repercutem uma sociedade violenta, injusta, árida de delicadezas e que fazem o belo e a estética parecerem artigos de luxo. Mas a Arte é necessidade primária do ser humano na produção e registro do conhecimento, como as pinturas rupestres, por exemplo. Fruto e expressão dos tempos originais, deixaram legado inestimável sobre uma das questões mais inquietantes: de onde viemos? Tal qual a Ciência, a Arte é forma de ver, antever e inscrever. É meio indispensável para enxergar soluções em um ambiente cada vez mais complexo, hostil e conflitante. Alimentar a falsa incomunicabilidade entre elas, mais que um equívoco, é contribuir para uma sociedade desigual, na qual não se reconhece na pluralidade do conhecimento, poderoso aliado para leitura plena de um mundo tão diverso, rico de significados e cambiante.
*Artista profissional, mestre em Teatro e doutora em Ciência.

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