Por MARCELO GLEISER
Neste que é seu Ano Internacional, a luz, embora presente em inúmeras
tecnologias do cotidiano, continua sendo fonte de mistérios e objeto de
pesquisas. No século 17, discutia-se se a luz era onda ou partícula; em 1905,
Einstein esclareceu que poderia ser os dois, e a usou como base para a Teoria
da Relatividade.
Somos criaturas da luz.
Nossa percepção
mais imediata da realidade vem dela, do que podemos ver. Claro, os outros
sentidos ajudam e, na cegueira, são essenciais. Mas acordamos ao abrirmos os
olhos, mesmo que mais figurativa do que fisiologicamente.
A luz representa
sabedoria, conhecimento, o lado bom do divino. As trevas são a ignorância, a
violência, o mundo do mal. Nossos corpos evoluíram para detectar padrões na
natureza, algo de fundamental para nossa sobrevivência num mundo cheio de
predadores e inimigos. É útil saber diferenciar entre um arbusto e um tigre, ou
entre sombras e um guerreiro da outra tribo.
No romance
"Ensaio sobre a Cegueira", José Saramago cria uma sociedade em que
todos (ou quase) ficam cegos subitamente. Essa cegueira pode simbolizar muita
coisa, ou mesmo ela mesma: como a sociedade colapsaria de forma devastadora se
perdêssemos coletivamente nossa visão; ou nossa visão coletiva.
Não é uma
coincidência que tantas culturas idolatrassem a luz através de seu
provedor-mor, o Sol. Os egípcios, os incas, os celtas, sabiam que o Sol é a
essência da vida. Sem ele, sem o influxo de luz e energia vindo dele, não
estaríamos aqui. O que vemos da realidade, fração pequena de todas as
"luzes" que nos cercam - o espectro luminoso das ondas de rádio aos
raios gama- coincide com o pico de emissão luminosa do Sol. O processo de
seleção natural privilegiou animais capazes de utilizar ao máximo a luz da
estrela que os ilumina. Claro, alguns animais percebem as franjas além do
visível, como as abelhas, que veem no ultravioleta, ou certas cobras, que veem
no infravermelho. Mas a maioria vê o que vemos, a luz que se espalha pela
atmosfera.
O que é?
É, portanto
paradoxal que a luz, que nos é tão íntima, seja também um dos grandes mistérios
da natureza. O que é, afinal, a luz? Não é palpável como o ar ou a água, e nem
sabemos exatamente do que é "feita". Se voltássemos ao século 17,
assistiríamos aos debates entre Isaac Newton e Christiaan Huygens, Newton
afirmando que a luz é feita de partículas indivisíveis - de átomos - e Huygens,
que a luz é uma onda que se propaga num meio que preenche todo o cosmo, o éter.
Ambos os
cientistas aplicaram sua teoria da luz para explicar uma série de fenômenos,
com sucesso variável. Que partículas seriam essas que compõem a luz?
Newton herdou
conceitos atomistas antigos, da época da filosofia pré-socrática de Leucipo e
Demócrito, que, em torno de 450 a.C., sugeriram ser tudo feito de corpúsculos
minúsculos que se propagam no "vazio". Para ele, a noção de que um
tipo de matéria preenche o espaço como o ar preenche nossa atmosfera era
absurda. Que matéria é essa, se perguntava, que é transparente e não oferece
resistência ao movimento dos planetas e cometas?
Por outro lado, se
o éter de Huygens era um tanto estranho, como atribuir realidade a pequenos
átomos de luz que não podem ser vistos? Como determinar se algo existe se não
pode ser diretamente observado? Por trás do debate sobre a natureza da luz
esconde-se a questão da natureza da realidade: como sabemos se algo existe?
A ciência, em
particular a física, cria descrições da realidade baseadas no que podemos
observar. Como disse Werner Heisenberg, um dos arquitetos da física quântica,
"o que vemos não é a natureza, mas a natureza exposta ao nosso método de
questionamento". Em outras palavras, nosso conhecimento do mundo depende
de quem somos e como pensamos. Uma outra inteligência, com métodos e percepções
diferentes, criaria uma outra descrição da realidade.
Esse fato é mais
do que claro quando lidamos com a natureza da luz. No final do século 19, a
física estava em crise: na época, a descrição da luz como onda era
universalmente aceita. Com isso, era também aceito o éter como meio por onde as
ondas luminosas se propagavam. Afinal, qualquer onda precisa de um meio
material que a suporte: ondas de água na água, ondas de som no ar... O problema
surgiu em 1887, quando o experimento dos americanos Albert Michelson e Edward
Mosley --desenhado para detectar o éter-- falhou. Se não existia o éter, o que
sustentava a propagação da luz?
Essa tensão entre
teoria e experimento é crítica para o desenvolvimento da ciência. Ao revelarem
falhas nas teorias, experimentos forçam cientistas a revisarem suas hipóteses,
muitas vezes levando-os a propor o inusitado. Se aprendemos algo com o estudo
da natureza, é que ela é bem mais criativa do que nós. A ciência precisa falhar
para avançar.
Entra Einstein.
Em 1905, com
apenas 26 anos, publica dois artigos que irão revolucionar nossa visão de
mundo. Ambos relacionados à natureza da luz, e ambos profundamente
contraintuitivos. As propostas do jovem cientista eram tão chocantes que só
seriam aceitas aos poucos, sob o peso da evidência experimental.
No primeiro
artigo, Einstein sugere que a luz tem um comportamento dual, podendo não só ser
interpretada como uma onda mas também como feita de partículas. Fachos de luz
podem ser descritos como sendo compostos por corpúsculos --ou
"quanta"-- mais tarde chamados de fótons.
Com isso, Einstein
reconcilia as visões antagônicas de Newton (luz é partícula) e Huygens (luz é
onda), criando algo surpreendente: uma entidade que se manifesta de forma
diversa no mundo natural de acordo com a situação. A luz não tem uma identidade
fixa; sua realização - o modo como se manifesta no mundo - depende de como ela
interage com objetos.
No segundo artigo
de 1905, Einstein propõe sua famosa teoria da relatividade especial. A essência
da teoria é o postulado: "A luz se propaga sempre com a mesma velocidade
independente do movimento da fonte ou do observador".
Para entender como
isso é estranho, imagine que você esteja num carro viajando a 60 km/h e que, do
carro, jogue uma bola para frente com velocidade de 20 km/h. Você verá a bola
viajar com 20 km/h, enquanto que uma pessoa na calçada verá a bola viajar a 80
km/h (60 + 20 = 80). Se, em vez da bola, você ligasse uma lanterna, tanto você
quanto a pessoa na calçada veriam a luz com a mesma velocidade, 300.000
quilômetros por segundo. A velocidade da luz é sempre a mesma.
Temperamental
Ninguém sabe por
que a velocidade da luz não muda, ou por que seu valor no espaço vazio é de
300.000 km/s. Mas esse comportamento esdrúxulo explica um número enorme de
observações, sendo, portanto aceito como uma descrição válida do que ocorre na
natureza.
Como se não
bastasse ter captado a natureza dual onda-partícula e sua velocidade constante,
Einstein notou também que a luz, ao contrário de tudo o que conhecemos no
universo, não tem massa. A luz é uma forma de energia pura que se propaga pelo
espaço, interagindo aqui e ali com a matéria, ou seja, com coisas que têm
massa.
Completando o
ciclo de artigos sobre a luz, ainda em 1905 Einstein escreve outro, mostrando
como energia e matéria estão relacionados; em particular, como energia pode
gerar matéria e vice-versa.
Essa é a famosa
fórmula E=mc², que tem aplicação direta na luz: se fótons de luz têm energia
suficiente (no caso, o extremo mais energético do espectro luminoso, os raios
gama) podem se transformar em partículas de matéria como, por exemplo,
elétrons. Luz e matéria são, de certa forma, dois lados da mesma moeda.
A física de
Einstein mostra que somos criaturas da luz não apenas de modo figurativo. Não
só porque precisamos dela para viver, mas porque podemos - ao menos em
princípio - nos transformar nela.
Antes, porém, que
os leitores se imaginem como fótons de luz viajando pelo cosmo a 300.000 km/s,
devo deixar claro que essa conversão só ocorreria se houvesse uma colisão entre
você e sua cópia feita de antimatéria.
A antimatéria não
é tão exótica quanto parece, mas feita de cópias das partículas que existem com
cargas elétricas opostas. Por exemplo, a antipartícula do elétron é o pósitron,
que tem carga positiva. Essas partículas são rotineiramente geradas em
laboratório.
O produto dessa
colisão seria uma explosão de fótons de raios gama com energia para destruir
boa parte do Brasil. Felizmente, estamos longe de criar cópias de antipessoas
no laboratório. No momento, criamos apenas átomos de anti-hidrogênio.
Este é o Ano
Internacional da Luz, celebrado no mundo inteiro em uma série de eventos
(light2015.org). Apesar de suas estranhezas, ou por causa delas, a luz é hoje
integrante essencial de nossas tecnologias, dos lasers no caixa de supermercado
a DVDs; de tecnologias usando micro-ondas e ondas de rádio a aplicações
industriais de fontes de luz ultraintensas; dos raios X e outras máquinas de
visualização em medicina a observações astronômicas de estrelas e galáxias
longínquas.
Considerando os
mistérios que sobrevivem em torno da luz e o quanto deles exploramos nas
aplicações tecnológicas, é difícil prever o que nos espera em cem anos. No
mínimo, mais uma revolução em nosso conhecimento do mundo que, tal como a que
começou no início do século 20, será iluminada pela curiosa natureza da luz.