Veneno
da mamba-negra, um dos mais tóxicos do mundo, contém molécula com potencial
analgésico similar ao da morfina, sem seus efeitos colaterais. Estudo da
substância também identifica novos alvos potenciais no sistema nervoso para o
combate à dor.
Por:
Marcelo Garcia
Ciência
Hoje On-line
Publicado em 03/10/2012 | Atualizado em 03/10/2012
Sem medo: pesquisa mostra que importantes descobertas podem ter as mais
perigosas e insuspeitas origens. (foto: viperskin/ Flickr – CC BY-NC-SA 2.0)
Ser
mordido por uma mamba-negra não deve ser uma experiência agradável – e muito
provavelmente seria sua última. Isso porque a cobra, natural da África, possui
um dos venenos mais tóxicos conhecidos. Porém, um novo peptídeo encontrado em
meio a toda essa letalidade pode dar origem a novas substâncias analgésicas. Em
ratos, os mambalgins mostraram uma eficiência similar à da morfina, mas sem
seus efeitos colaterais. Além disso, por agirem sobre estruturas moleculares
que nunca haviam sido associadas à sensação de dor, podem servir para a
identificação de novos alvos para futuros tratamentos.
“É muito instigante que um veneno
tão mortal também contenha uma porção pequena de um poderoso analgésico não
tóxico”
O
estudo, desenvolvido na França, foi publicado na edição desta semana da revista
Nature. A nova classe de peptídeos corresponde a apenas 0,5% do conjunto de
substâncias que formam o veneno da mamba-negra. Os mambalgins (mambalgin-1 e
mambalgin-2) inibem a atividade de estruturas do sistema nervoso denominadas
canais iônicos sensíveis a ácidos (ASICs, na sigla em inglês). Esses canais são
responsáveis pelo transporte seletivo de íons, especialmente de sódio, através
da membrana celular de neurônios – processo fundamental para a transmissão dos
sinais elétricos.
“Não
sabemos se os mambalgins desempenham algum papel no veneno da cobra ou qual
efeito produzem no corpo das presas, mas é muito instigante que um veneno tão
mortal também contenha uma porção pequena de um poderoso analgésico não
tóxico”, afirma uma das autoras do estudo, a fisiologista Anne Baron, da
Universidade de Nice Sophia Antipolis. “Seu potencial contra dor se mostrou
comparável ao dos derivados da morfina, sem, no entanto, envolver receptores
opioides, relacionados aos muitos efeitos colaterais da substância."
A
aplicação clínica da morfina pode levar a problemas como diminuição da
capacidade respiratória, constrição das pupilas, rigidez muscular, sedação, euforia
e até dependência química.
Derivada do ópio, a morfina é um dos fármacos mais utilizados no combate
à dor. Os mambalgins apresentaram um potencial analgésico comparável ao do
composto, mas sem provocar seus muitos efeitos colaterais. (foto: -sel/ Flickr
– CC BY-NC-SA 2.0)
Além
de identificar os peptídeos, o estudo também traz novos conhecimentos sobre a
fisiologia molecular da dor e abre novas perspectivas para seu combate. Muitos
ASICs são reconhecidamente associados à transmissão da sensação de dor, tanto
nos nociceptores (células nervosas especializadas nesse tipo de sinal), quanto
em neurônios do sistema nervoso central, que conduzem a informação dos
nociceptores até o cérebro.
No
entanto, os mambalgins atuam sobre canais de íons que nunca haviam sido
relacionados a essa sensação, denominados ASIC1a, ASIC2a e ASIC1b. “A ciência
já havia relacionado outros canais de íons à sensação de dor, mas essas
associações são inéditas”, comemora Baron. “Por isso, o estudo desses canais e
de substâncias que atuem sobre eles pode dar origem a novas classes de
analgésicos”, acredita.
Sobre ratos e cobras
Os
pesquisadores avaliaram a ação da substância no alívio da dor a partir de
testes com ratos. Soluções com os mambalgins eram injetadas nos animais por
diversas vias (como subcutânea e intracerebral) e a sensibilidade dos roedores
era medida a partir de suas reações a estímulos de dor aguda e dor
inflamatória.
“As vias associadas à dor são
parecidas no homem e no rato, o que nos dá confiança no seu potencial para
combater a dor”
“Não
sabemos ainda se poderemos repetir, em humanos, os bons resultados obtidos com
os ratos”, pondera Baron. “Mas as vias neurológicas associadas à dor são
parecidas no homem e nesses animais, o que nos dá confiança no seu potencial
para combater a dor.”
Ela
pondera, no entanto, que ainda há muitas etapas a serem vencidas para uma
aplicação comercial da molécula. O próximo passo será a realização de mais
testes pré-clínicos que avaliem seu potencial para o alívio de outros tipos de
dor, como dores crônicas, e com outras vias de administração.
“Há
muitos desafios nesse caminho”, avalia. “Por exemplo, sua própria natureza de
peptídeo pode dificultar a manipulação dos mambalgins pela indústria farmacêutica,
por serem pouco estáveis e difíceis de administrar oralmente. No entanto, a
química de hoje é boa o suficiente para superar esse tipo de barreira.”
Baron
lembra que, apesar de se tratar de um fato raro, essa não é a primeira vez que
substâncias analgésicas são identificadas no veneno de animais. Até agora, a
mais notável delas não vem de cobras, mas de caracóis marinhos, e é utilizada
no combate à dor crônica.
Rápida,
mortal e famosa
A mamba-negra ou mamba-preta (Dendroaspis
polylepis) é uma das cobras mais venenosas do mundo: sua taxa de
mortalidade, sem tratamento, é de quase 100%, levando a presa à morte de
minutos a poucas horas depois da mordida. Ela pode ser encontrada em boa parte
da África e é uma das mais velozes serpentes do planeta, podendo se deslocar
sobre o solo em velocidades de até 20 km/h. Seu nome está relacionado à
coloração da parte interna da sua boca – uma ameaçadora bocarra negra. A
espécie ficou famosa em 2003 e 2004, por aparecer (como na imagem acima) nos
filmes da série Kill Bill, do cineasta Quentin Tarantino, e servir de codinome
para a personagem principal da produção, Beatrix Kiddo, interpretada pela atriz
Uma Thurman.
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