Neste ano, comemora-se meio
século da publicação de 'A estrutura das revoluções científicas', do físico e
filósofo norte-americano Thomas Kuhn (1922- 1996).
Qualquer
lista relacionando os 100 livros mais relevantes e influentes do século passado
não poderia deixar A estrutura das revoluções científicas de fora, sob pena de
ter seus critérios de escolha devidamente contestados. As ideias contidas nessa
obra transformaram radicalmente a imagem da ciência que predominara até então.
Como
consequência, as áreas de história, sociologia e filosofia da ciência nunca
mais foram as mesmas depois de 1962. O livro inspirou até os chamados science
studies (estudos sobre ciência), campo responsável pelas mais ricas discussões
sobre a ciência nos nossos dias.
A
estrutura - traduzida pela primeira vez no Brasil em 1975 - deixou marca
indelével em praticamente todos os campos do saber, a ponto de o filósofo
norte-americano Richard Rorty (1931-2007) ter sentenciado que Kuhn contribuiu
para remodelar a cultura humana como um todo - notadamente, para borrar a
fronteira demarcatória entre ciências naturais, sociais e humanas.
O
sucesso da obra não deve, todavia, ser identificado apenas com a atitude de
aprovação. Pelo contrário. Se houve autor alvo de ataques contundentes (e
virulentos), esse foi Kuhn. Tanto assim que empregou, em grande medida, sua
produção acadêmica pós-1962 para responder às críticas, alegando sempre ter
sido mal compreendido.
Críticas - O
que teria levado Kuhn, então, a sofrer tamanha 'perseguição'? Em grande parte,
isso se explica pelo modo como ele descreveu o desenvolvimento da ciência, uma
vez que este se distinguia substancialmente da forma como, até então, o progresso
científico fora interpretado. A nova imagem de ciência proposta por Kuhn pode
ser assim esquematizada: ciência normal - crise - revolução científica - nova
ciência normal, e assim sucessivamente.
Em
linhas gerais, a ciência normal é uma modalidade de pesquisa conduzida sob os
auspícios de um paradigma, sendo este responsável por instaurar um consenso em
vários níveis (metodológico, epistemológico, ontológico e axiológico) no
interior de uma comunidade.
Nessa
fase, os cientistas lidam com 'operações de limpeza' em seu trabalho cotidiano,
no sentido de precisar resolver, de maneira personalizada e criativa,
quebra-cabeças; ou seja, aprofundar o conhecimento sobre os 'fatos'; aprimorar
o próprio paradigma; e aumentar a correspondência dos 'fatos' com esse último.
No
período de ciência normal, a pesquisa progride de modo linear e cumulativo,
graças ao consenso generalizado engendrado pelo paradigma. A confiança no
paradigma pode ser quebrada, entretanto, quando os quebra-cabeças da prática
normal se tornam anomalias, isto é, problemas que, a princípio, não são mais
passíveis de solução.
A
crise instaurada em função da estagnação do paradigma vigente pode ter como
desfecho possível uma revolução científica, episódio de desenvolvimento não
cumulativo em que um paradigma é substituído por outro, incompatível com o
anterior.
Foi,
efetivamente, com relação ao tópico das revoluções científicas que Kuhn
despertou a ira de seus contemporâneos. Afinal, a leitura mais comum compreende
que Kuhn estaria comparando - ao afirmar que, na disputa entre paradigmas
concorrentes, não se pode recorrer a critérios estritamente lógicos e empíricos
para decidir a querela - a ciência com outras formas de conhecimento
normalmente consideradas 'irracionais' ou 'subjetivas'.
Inclusive,
no livro, Kuhn estabelece analogias surpreendentes entre essas formas de
conhecimento e a revolução científica: mudança de perspectiva (gestalt),
diálogo de surdos, revolução política, conversão religiosa etc. Tudo isso para
ilustrar a tese - denominada por ele incomensurabilidade - segundo a qual não
haveria possibilidade de se estatuir um juiz neutro para bater o martelo, de
modo inequívoco, em prol de um dos dois lados.
Paradigmas,
portanto, argumentariam sempre de forma autorreferente, não havendo
possibilidade de se lançar mão da coerência lógica e racional, nem da
correspondência com a verdade sobre a natureza.
Provocação - Nada
poderia soar mais provocador para os defensores da ciência como modelo de
racionalidade e objetividade. Em obras posteriores, Kuhn tentou desfazer os
mal-entendidos sobre seu 'irracionalismo', 'subjetivismo', 'relativismo'... Sua
alegação básica foi afirmar que a incomensurabilidade, ao contrário do que
pensaram seus adversários, seria justamente a condição necessária para que a
ciência continuasse progredindo, no sentido de investigar parcelas da realidade
até então desconsideradas.
A
incomensurabilidade propiciaria o advento de novas especialidades científicas -
daí sua proposta estar afinada com as concepções que defendiam uma
racionalidade especial da ciência.
Sem
querer entrar nessa disputa por ora, o fato é que, curiosamente, suas ideias
foram incorporadas principalmente pelas áreas ligadas às ciências sociais e
humanas, tendo havido até, a partir da década de 1970, verdadeira corrida em
busca de paradigmas perdidos nas diversas disciplinas. Em contrapartida, nas
ciências naturais - originalmente o objeto de análise de A estrutura - a
recepção das ideias kuhnianas passaram ao largo do entusiasmo.
Seja
como for, só o fato de Kuhn não ter explicado a ciência em termos apenas de
metodologia - tendo cunhado a noção mais abrangente de paradigma (visão de
mundo e valores compartilhados) - representa grande avanço em comparação à concepção
de inspiração positivista predominante à época - e, talvez, ainda hoje. Isso
sem contar outras contribuições igualmente importantes.
O autor - A
compreensão da relevância da publicação de A estrutura seria incompleta ou
injusta se não falássemos algo sobre seu autor. Não só o conteúdo do livro é
inovador, mas também o que tornou possível sua existência. Kuhn só foi capaz de
nos legar obra tão significativa porque viveu a experiência da
interdisciplinaridade de modo intenso.
Mais
do que isso, Kuhn transitou entre as ciências naturais e as ciências sociais e
humanas de modo exemplar, valendo lembrar que, por exemplo, no período final
(1958-1959) de gestação de A estrutura, trabalhou no Centro de Estudos
Avançados em Ciências do Comportamento, na Califórnia (EUA), que foi
fundamental para que concebesse a ideia de paradigma como consenso, ao ter
convivido com o dissenso reinante entre os cientistas sociais.
Tendo
doutorado em física teórica, Kuhn deu uma guinada para a história e a filosofia
da ciência, mas sem ter perdido seu interesse original naquela área. Na
verdade, é como se Kuhn tivesse feito esse movimento de 'sair' de sua área de
formação para buscar ferramentas que lhe permitissem conhecê-la melhor,
olhando-a de fora. E, ao entrar nas humanidades, levou toda sua bagagem de
cientista, que lhe permitiu causar, 'naturalmente', verdadeira revolução dentro
daquelas.
A
trajetória de Kuhn nos inspira a não pensar mais em termos de dentro e fora,
uma vez que seu grande legado foi ter derrubado as fronteiras entre ciências e
humanidades. A questão persistente é: como podemos levar para o nível
institucional, sem perda da espontaneidade, o que Kuhn fez 'naturalmente'
durante toda a sua vida?
(Portal Ciência Hoje)
Nenhum comentário:
Postar um comentário