THELMA LOPES*
Arte
e Ciência, hoje, podem parecer duas áreas distantes e antagônicas, mas a
relação entre as duas, que se subdividem em outras, nem sempre foi de
distância. Pintores renascentistas aplicavam princípios matemáticos para
conferir ilusão de volume e proporção às imagens, visando retratar a natureza
realisticamente. Os médicos, por sua vez, recorriam aos artistas, que, ao
registrarem dissecações, como Rembrandt, em “Lição de anatomia”, documentavam o
corpo humano gerando fontes de estudo inéditas. Já Escher utilizou a geometria
para criar realidade à parte: infinita e fantasiosa. Quando o paradigma
dominante passou a ser o científico, Arte e Ciência foram afastadas,
especializando métodos, processos e linguagens. Um vocabulário relacionado à
Ciência foi incorporado ao cotidiano, por diferentes setores da sociedade, de
forma indiscriminada, por vezes deturpada, e outras com fins mercadológicos. O
caráter utilitário da Ciência e a concretude do progresso tecnológico
contribuíram para que a última passasse a ser encarada como algo inconteste.
Como duvidar do “cientificamente comprovado”? Não se trata de dispensar ou
banalizar a Ciência, o que por si só seria uma ingenuidade nos dias atuais,
face ao consenso generalizado de sua autoridade no âmbito social, a despeito
das críticas a tal status dentro da própria Ciência e dos recentes retrocessos.
Não,
a Terra não é plana! Trata-se de legitimar outros saberes. Enquanto Einstein
revolucionava a Física e apresentava nova forma de interpretar tempo e espaço,
Michel Proust desfigurava o tempo e fazia dele o grande protagonista de sua
densa obra “Em busca do tempo perdido”. Se Einstein desvelava que o tempo não
era absoluto, como postulou Newton, revelando assim um amplo universo de
possibilidades temporais, paralelamente, o autor francês demonstrava como o
tempo é relativo e quantos universos podem caber em um adocicado pedaço de
madeleine. Proust relacionou tempo, memória e afetos. Estudos posteriores
comprovaram que olfato e paladar são os únicos sentidos que se ligam
diretamente ao hipocampo, o centro da memória. O escritor pressentiu tais
ligações e explorou cheiro e gosto do típico bolo francês para reviver sua
infância. Proust se antecipou à Ciência. E foi além. Ao falar de uma memória na
qual selecionamos aquilo que gostaríamos de recordar para embelezar nossas
lembranças, o autor sublinha a importância do esquecimento. Daí a ideia
proustiana de que só se vive plenamente na memória. Não fosse a capacidade de
esquecer, como poderíamos seguir adiante depois que um grande amor se vai? Como
ser feliz sem saber esquecer as dores do corpo e da alma? Manter a memória viva
é tão importante quanto saber esquecer: isso também nos diz Proust.
Embora
haja longo caminho a percorrer são crescentes as iniciativas de reconciliação
entre Arte e Ciência. No Brasil e exterior, como na prestigiada Universidade de
Harvard. Destaca-se a criação do termo “ArtScience”, que ao aglutinar os dois
campos nos convida a novas interpretações. No entanto, ainda é preciso
fortalecer o entrelaçamento de saberes, principalmente em contextos como o
nosso. O Brasil é um país onde o abismo social é profundo. E desse fosso,
que também é cultural, emergem desigualdades que repercutem uma sociedade
violenta, injusta, árida de delicadezas e que fazem o belo e a estética
parecerem artigos de luxo. Mas a Arte é necessidade primária do ser humano na
produção e registro do conhecimento, como as pinturas rupestres, por exemplo.
Fruto e expressão dos tempos originais, deixaram legado inestimável sobre uma
das questões mais inquietantes: de onde viemos? Tal qual a Ciência, a Arte é
forma de ver, antever e inscrever. É meio indispensável para enxergar soluções
em um ambiente cada vez mais complexo, hostil e conflitante. Alimentar a falsa
incomunicabilidade entre elas, mais que um equívoco, é contribuir para uma
sociedade desigual, na qual não se reconhece na pluralidade do conhecimento,
poderoso aliado para leitura plena de um mundo tão diverso, rico de
significados e cambiante.
*Artista
profissional, mestre em Teatro e doutora em Ciência.
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