Por Viviane Monteiro, Jornal da
Ciência.
Gilberto
Orivaldo Chierice, professor da USP que liderou os estudos sobre a eficácia da
substância em pacientes com câncer, relatou encontro com presidente da Anvisa
ainda na década de 1980. A representante da Agência Nacional de Vigilância
Sanitária disse, porém, que informações necessárias para as avaliações dos
protocolos dos ensaios clínicos foram solicitadas, mas não chegaram à
instituição.
Sob
críticas e pressão de parlamentares, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária
(Anvisa) admitiu que a instituição foi procurada pelos pesquisadores em 2010 a
fim de dar início aos protocolos de pesquisas com humanos para comprovar a
eficácia da fosfoetanolamina, substância que se mostra promissora no combate ao
câncer. A superintendente de Medicamentos e Produtos Biológicos do órgão
regulador, Meiruze Souza Freitas, disse, porém, que informações necessárias
para poder fazer as avaliações dos protocolos dos ensaios clínicos foram
solicitadas, mas não chegaram à instituição.
O
esclarecimento de Freitas foi concedido após o relato do cientista Gilberto
Orivaldo Chierice, professor e pesquisador aposentado da Universidade de São
Paulo (USP), de que os pesquisadores procuraram o órgão regulador e
laboratórios farmacêuticos em busca de apoio para os ensaios clínicos e a produção
profissional da substância.
Esses
depoimentos foram um dos pontos mais aguardados da audiência pública, realizada
nesta quinta-feira, 12, na Comissão de Seguridade Social e Família, na Câmara
dos Deputados, em Brasília, que reuniu dezenas de parlamentares, pacientes com
câncer em defesa da liberação da substância, pesquisadores e outros
interessados no tema. Um dos argumentos difundidos é de que os pesquisadores
foram desacreditados por não seguirem os procedimentos normais para realização
dos testes clínicos de apoio de laboratórios.
Na
audiência, realizada em duas etapas (manhã e tarde), a dirigente da Anvisa
tentou rebater as críticas de parlamentares sobre burocracia, morosidade da
instituição no âmbito da análise dos protocolos de pesquisas clínicas, além e
submissão ao lobby da indústria farmacêutica internacional em detrimento
do avanço científico nacional.
A
representante da Agência disse que a reunião em 2010 no órgão, registrada em
ata, foi realizada, sobretudo, com a área técnica da pesquisa clínica e da área
de eficácia e de segurança da Anvisa. Segundo seu depoimento, o encontro foi
fruto de uma solicitação de audiência com a presidência, mas participaram da
reunião técnicos e especialistas da Anvisa, que deram orientação sobre os passos
relacionados aos registros das pesquisas e solicitaram informações sobre os
dados necessários para que uma prévia-avaliação pudesse ser feita. Ela
ressaltou, porém, que esses dados não chegaram à instituição.
Versão do cientista
Na
versão de Chierice, que iniciou as pesquisas no fim da década de 1980, a
reunião dos pesquisadores foi com a presidência. “Quando estivemos no órgão, o
presidente da Anvisa da época (Dirceu Raposo de Mello) nos convidou para
começar os trabalhos juntamente com a Fiocruz. Não fomos registrar o produto.
Fomos buscar uma orientação para que a Anvisa conduzisse os papéis. Tanto é que
para fazer os dados clínicos nos foi sugerido hospitais militares, porque eram
os hospitais de confiança do governo”, recordou o cientista, assegurando ter
tudo documentado.
“É
uma papagaiada o que está na imprensa. Vira e mexe surge a pergunta se fomos ou
não fomos a Anvisa. Eu não minto. O deputado que estava presente conosco tirou
uma foto há quatro anos. Não fui eu que tirei, foi ele”, complementou o cientista,
referindo-se a uma foto do encontro apresentada pelo deputado Reginaldo de
Oliveira Lopes (PT/MG) na audiência pública e que mediou o encontro da época.
O
cientista acrescentou que a Fundação Oswaldo Cruz foi procurada em seguida.
“Temos também documentos de que procuramos a Fiocruz, que disse que poderíamos
iniciar os trabalhos. Isso foi conversado com a instituição, onde estavam todas
as autoridades competentes da área de saúde. Foi-nos dito, porém, que só
poderíamos iniciar os trabalhos se a patente fosse transferida”.
Chierice
afirmou que a conversa não avançou porque a patente da fosfoetanolamina
sintética não tem finalidade comercial. Segundo disse, está em nome de cinco
cientistas envolvidos na pesquisa e o registro da patente é para proteção da
substância. “Essa patente existe única e exclusivamente para proteger a
substância. Dentro da universidade fizemos muitos trabalhos que foram para
gaveta e para evitar que a fosfoetanolamina ficasse na gaveta, a patente teria
de pertencer a alguém. E esse alguém era eu e meus alunos”, destacou, sob
aplausos da plateia.
O
cientista foi questionado sobre o fato de não ter fechado acordo com a Fiocruz
e respondeu que não aceitou o acordo “porque não garantiria que a substância
chegaria ao povo e que poderia ficar engavetada.”
Bola para frente
A
representante da Anvisa entende, porém, que o momento atual é outro e que não é
o caso de olhar pelo retrovisor. “O que precisamos fazer agora é avaliar os
dados atuais”, pontuou. Freitas disse que a intenção é avaliar o quão
promissores são dados apresentados pelos pesquisadores e se também é possível
encurtar alguma etapa para os estudos clínicos -, mas de forma responsável,
para não atropelar a velocidade necessária da realização dos testes com seres
humanos para comprovar a eficácia da substância e sobre a toxicidade da droga.
“Não
podemos fazer isso sem pular as etapas. Há muitos relatos interessantes que
mostram que há perspectiva de resposta positiva, mas os estudos clínicos devem
ser controlados e padronizados para chegarmos a uma conclusão sobre o
medicamento”. Ela destacou que em outros países a fosfoetanolamina é utilizada
como suplemento de cálcio, mas não sem indicação terapêutica. “São utilizados
como suplementos e não como medicamentos”, esclarece.
Freitas
frisou que a Anvisa segue os padrões internacionais e defendeu o procedimento
técnico do quadro de funcionários da Agência para avaliar o risco da exposição
dos pacientes a uma nova droga. Segundo disse, a avaliação de uma molécula nova
demora em torno de 360 dias no mundo e a de novas drogas, em torno de 270 dias,
procedimentos semelhantes aos adotados no Brasil.
Ainda
em resposta aos parlamentares, a especialista da Anvisa acrescentou que a
submissão “de um dossiê” na agência reguladora precisa ter a participação de
uma empresa ou indústria para desenvolver o produto em estudo e assumir a
responsabilidade do medicamento no mercado. Acrescentou, ainda, que o órgão
controlador “não tem a menor intenção” de proibir ou de limitar o acesso a uma
droga que tenha eficácia terapêutica comprovada.
História da fosfoetanolamina
Chierice
fez um relato sobre a trajetória de estudos sobre a fosfoetanolamina sintética,
princípio ativo compatível ao pH (potencial hidrogeniônico) do organismo humano
e que, segundo ele, combate células cancerígenas. A pesquisa foi iniciada entre
o fim de 1989 e início da década de 1990. De acordo com os pesquisadores, a
fosfoetanolamina tem mais de 50 anos de história e foi isolada e identificada
na década de 1930. Os pesquisadores garantem que não há efeito colateral do uso
do produto.
O
pesquisador disse que a substância brasileira é sintetizada de forma inédita no
mundo. Enquanto o grama de fosfoetanolamina é comprado por US$ 2,5 mil no
mundo, “a nossa” tem rendimento de 98%. “Essa é a patente que temos. O resto,
vocês me perdoem, mas é muita falação para uma coisa que é exata”, disse o
cientista, econômico nas palavras quando fala com a imprensa.
Quando foi questionado pela imprensa se lamentava a
decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo de cancelar a distribuição da
fosfoetanolamina, ele respondeu que “não”. “Acho que você tem que perguntar ao
juiz, por que ele fez isso. Talvez ele não precise das cápsulas, agora. Talvez
mais tarde, sim. Aí, vamos ver”, provocou.
Na
audiência pública, Chierice recordou que os testes com humanos começaram em
1995, na comissão de ética (CEP) do Hospital Amaral Carvalho, dois anos antes
da criação da Anvisa, em 1997. Conforme relatou, esse foi um acordo fechado com
a USP. O procedimento, de acordo com ele, foi “igualzinho” ao que acontece hoje
nas CEPs distribuídas em hospitais universitários e em instituições de
pesquisas, dentre outros.
“A
comissão de ética se reuniu, escolheu a área, escolheu o produto e pediu a
permissão ao famoso Ministério da Saúde, que foi concedida. O hospital, então,
começou a trabalhar”, declarou ele, que diz não ter informações sobre o fato de
o hospital hoje não ter o histórico desses dados clínicos.
O
cientista acrescentou, porém, que a substância é doada há 20 anos no Brasil “e
existe muita gente viva em razão dela”. Calculou, grosseiramente, que mais de
50 mil pessoas usaram a substância. “Têm muito médico, pai de médico, filha de
médico, mãe de médico e filho de médicos curados. O médico pede a
fosfoetanolamina para sua família. Mas para o paciente não.”
Ele disse não temer que a substância possa ser
patenteada no mundo, diante do impasse brasileiro. Nesse caso, sugeriu apenas
que a substância chegue ao paciente com câncer. Ele desconhece estudos
semelhantes ao do Brasil no mundo e destacou que a ciência internacional está interessada
no tema. “Tenho convite da Nature e tenho publicações
internacionais de revistas de câncer”.
O
deputado Celso Russomano (PRB/SP) foi um dos parlamentares que defenderam a
liberação da substância. Citou o caso de seu pai, com 86 anos, que está com
câncer e sem condições de fazer a quimioterapia porque a saúde está debilitada.
Disse ter entrado com ação judicial, sem sucesso, para que o pai pudesse
receber as cápsulas e ser voluntário no uso da substância.
Eficácia
Para
o chefe do Laboratório de Imunologia do Instituto Butantan, Durvanei Augusto
Maria, um dos responsáveis pela fosfoetanolamina, a substância tem efeitos
comprovados cientificamente no tratamento de vários tipos de câncer, como o de
mama, rins, leucemia e na boca. “A fosfoetanolamina tem potencial para ser uma
nova droga para o tratamento de tumor na cavidade oral. É a primeira vez que
isso acontece”, assegurou.
Augusto
Maria apresentou resultados de pesquisas via imagens que mostravam bolhas na
superfície das células e disse que os estudos comprovam a redução dos tumores e
a morte das células cancerígenas.
Ele
garantiu que o Brasil tem tecnologia para produzir o fármaco para atender a
população e cobrou um posicionamento efetivo de como ficará a liberação da
substância e o atendimento aos pacientes. “Temos que ter ações que possam
ser conclusivas. Não queremos burlar as fases (das pesquisas), mas pelos
estudos, pelos anos de pesquisa e pelo material disponível que podem ser
compilados em um dossiê, etapas em menor período de tempo podem ser efetivas”,
sugeriu.
Posicionamento da Sociedade Brasileira de Oncologia
Clínica
O
representante da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC), o médico
Sandro Martins, reconheceu que a fosfoetanolamina é uma substância promissora
para o tratamento do câncer, mas não recomendou o uso das cápsulas “azuis e
brancas” pelas vítimas de câncer, antes da realização, controlada pela Anvisa,
dos ensaios clínicos para determinar os níveis de segurança ao uso humano.
Embora
seja uma substância conhecida, o médico disse que o papel desse tratamento no
ser humano ainda não foi observado de maneira sistematizada, o que interfere no
conhecimento sobre efeitos colaterais do uso do produto. “Efeitos colaterais
não estudados não quer dizer que não existam. Até a água é tóxica, dependendo
da dose que se ingerir. E não é possível que a fosfoetanolamina seja mais
segura do que a água”, alertou.
Martins
avaliou os ensaios pré-clínicos apresentados pelos pesquisadores na audiência
pública e disse que na medida em que se aumenta a dose do medicamento para
melhorar o efeito antitumoral, pelos modelos in vitro, é de se
esperar que o aumento da dose da substância em seres humanos possa levar ao
aparecimento de toxidade: “Em algum momento, essa toxidade pode se tornar
proibitiva, porque se torna maior do que a proporção dos benefícios
proporcionados”.
“Esse
intervalo de dose entre o mínimo que produz uma eficácia interessante e o
máximo de toxidade aceitável torna-se o que se chama de janela terapêutica que
todo medicamento tem. Pode ser que a fosfoetanolamina tenha uma janela
terapêutica infinita. Ou seja, pode-se ingerir 7 kg da substância e não se
verificar toxidade. Mas isso há de ser demonstrado”, complementou.
Em
outra etapa da audiência pública, o cientista Renato Meneguel, médico do grupo
responsável pela descoberta da substância, respondeu que foram realizados
testes de toxidade com humanos, embora não tenham sido controlados pela Anvisa.
Ele apresentou laudos médicos produzidos por toxicologistas da UNESP de
Botucatu, interior de São Paulo, e acrescentou que os testes pré-clínicos foram
realizados baseados nos protocolos americanos. “Falaram aqui ser necessário
fazer testes de letalidade (DL 10). Isso quer dizer 10% de mortalidade dos
animais. Mas já avaliamos que a dose letal média é de 50%”, acrescentou.
“A
fosfoetanolamina não é manipulada. Ela é sintetizada”, disse o médico, sobre
críticas de que a substância poderia ser comprada industrialmente. “O que é
comprada industrializada é a substância para fazer shampoo, que não está dentro
dos padrões do pH do corpo humano e nem dentro do organismo humano. A nossa
está, comprovadamente”, assegurou.
Como
provocação, apresentou maços de cigarros, que detêm 4 mil substâncias
cancerígenas e que são regulamentados pela Anvisa.