O antropólogo Daniel Miller, em seu
primoroso texto ‘Artefacts and the meaning of things’ (Artefatos e o
significado das coisas), coloca a seguinte questão: que objetos preservar para
a posteridade em um museu da cultura material contemporânea?
Tarefa complexa, e museu certamente
gigantesco.
O próprio Miller desfia parte do
problema: casas e navios, muito grandes; algodão doce e guirlandas, efêmeros…
Ele pergunta: “Entrariam todos os modelos de espelhos de carro? E marcas de
xampu?”
Dada a subjetividade da tarefa, ouso
aqui apontar item que deveria constar de dito museu no Brasil: a fotografia em
destaque nesta página, com dois risquinhos centrais, em forma de ‘L’. Lasca
(significativa) do Brasil moderno se deve aos fatos ocasionados por essa imagem
de abstração ímpar – cujo original, colado em cartolina dura, tem repousado,
por anos, atrás de armário pesado, em Petrópolis, na casa de seu dono, Alfredo
Marques, hoje pesquisador aposentado do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas,
no Rio de Janeiro (RJ).
A história entremeada nesse punhado
de pontinhos pretos em fundo bege tem a ver com o estabelecimento, no Brasil,
dos alicerces político-administrativos da forma de cultura que o historiador
marxista Eric Hobsbawm diz ter sido a mais influente no século passado, a
ciência – e que tão pouca atenção merece dos departamentos de história de
nossas universidades.
Nossa fotografia remete à época em
que a física nuclear era a vedete das ciências. A imagem é o ponto alto do
emprego da fotografia como detector pelos físicos, técnica que ganhou seu
formato pleno no início do século passado, quando o microscópio passou a ser
usado para perscrutar, na dimensão do milionésimo de metro, os efeitos da
radioatividade no interior da fotografia – esta, por sinal, nada mais era do
que um suporte (vidro, papel etc.) sobre o qual era despejada finíssima camada
de gelatina em que estão dispersos grãos de um sal de prata sensível a
partículas de luz (fótons) e a partículas elementares dotadas de carga elétrica
(elétrons, prótons etc.).
A união da fotografia com o
microscópio – a esse binômio, somem-se poucos vidros de reagentes para
revelação – permitiu, nas décadas seguintes, fazer ciência de ponta de forma
simples e barata – inclusive no Brasil, como veremos.
Na década de 1920 e na seguinte,
basicamente na Europa, a técnica se aprimorou, abarcando, além de fenômenos e
constituintes do núcleo atômico, os mistérios dos raios cósmicos (radiação
extraterrestre que bombardeia a Terra a todo instante). Porém, até então, a
técnica só havia confirmado descobertas obtidas por outros detectores – o
nêutron, em 1932, é o caso emblemático dessa lista de confirmações, apesar de
esse fato ser bem pouco conhecido, mesmo pela historiografia da física.
A imagem que abre este ensaio – na
verdade, um mosaico de fotos menores feitas com o auxílio de um microscópio e
colocadas em sequência – foi publicada na prestigiosa revista científica Nature,
em24 de maio de 1947. Ela imortaliza a primeira descoberta da técnica, que,
depois da Segunda Guerra, foi batizada técnica das emulsões nucleares – emulsão
nuclear é só um nome pomposo para uma chapa de fotografia em preto e branco na
qual se aumentou tanto a espessura da camada de gelatina quanto a concentração
do sal de prata. As empresas Ilford e Kodak se tornariam as principais
fabricantes desse tipo de fotografia, desenvolvida e produzida sob encomenda
para os físicos.
As emulsões nucleares viraram um tipo
de detector ideal para países europeus que tentavam (sem praticamente verbas)
reconstruir sua ciência no pós-guerra – Itália sendo o caso emblemático. Razão
já apontada aqui: simples e barata. Mas há, pelo menos, mais dois motivos: i)
era ideal para ser empregada por físicos que haviam tido formação universitária
bem precária nos anos de guerra e agora queriam fazer pesquisa; ii) os raios
cósmicos, ultraenergéticos, são fornecidos gratuitamente pela natureza –
portanto, nada de despesas construindo aceleradores de partículas caríssimos,
iniciativa que a então Europa, destruída pelo conflito, não podia tomar.
A figura acima fez do Laboratório H.
H. Wills, da Universidade de Bristol (Inglaterra), o templo maior da técnica.
Para lá, em tempos ainda de pouca fama dessa instituição, seguiu, no inverno de
1946, o jovem físico brasileiro César Lattes (1924-2005). Ao final daquele ano,
Lattes e seu ex-professor na Universidade de São Paulo, o físico italiano
Giuseppe Occhialini (1907-1993), decidiriam expor emulsões nucleares no Pic du
Midi, nos Pirineus franceses, a 2,8 mil m de altitude. A esperança era a de que
um fragmento ainda desconhecido de matéria deixasse sua trajetória impressa nas
chapas – por sinal, um lote delas continha, além do sal de prata, o elemento
químico boro. E isso parece ter sido importante para os desdobramentos [Em
tempo: sou da opinião de que, com base na documentação histórica que sobreviveu
até nossos dias, a iniciativa tanto da exposição das chapas quanto do
carregamento delas com boro foi de Lattes].
Cerca de um mês depois, as chapas
foram recolhidas e reveladas por Occhialini – e isso, indica a documentação,
teria ocorrido no final de 1946. E lá, em meio a uma selva de risquinhos,
estavam aquele dois, em forma de ‘L’. O clima no H. H. Wills, com seus cerca de
20 integrantes, ganhou momento. Dois traços semelhantes aos da imagem foram
encontrados, mas um deles, o de maior extensão, ‘saía’ da fotografia –
tecnicamente, os físicos diziam que o traço não parava na emulsão. Esse evento
também está lá na Nature de 24 de maio.
Pouco depois (dias, talvez), foram
avistadas as duas trajetórias da imagem em questão. Depois de muita discussão –
e isso provavelmente se estende do final de 1946 até o envio do artigo para a Nature
–, os físicos do H. H. Wills concluíram que o traço de menor extensão era o
méson pi (hoje, píon), partícula corajosamente proposta 13 anos antes pelo
físico japonês Hideki Yukawa (1907-1981) para explicar por que os integrantes
do núcleo (prótons e nêutrons) permanecem colados – essa ousadia teórica e a
comprovação experimental por Bristol fizeram de Yukawa o primeiro Nobel do
Japão, em 1949.
O traço mais longo –0,6 mm de
comprimento, daí a necessidade de um microscópio para visualizar essas
dimensões – era um ‘elétron’ pesado (na época, méson mi; hoje, múon) [Em tempo:
acredita-se que o boro tenha ajudado a imagem em questão a não se apagar com o
tempo.]
A descoberta teve repercussão
significativa na comunidade internacional. Um dos motivos: mostrava que havia
dois mésons de natureza distinta, encerrando uma das controvérsias científicas
mais abrasadas (e interessantes) do século passado sobre a constituição da
matéria. As melhores mentes do planeta se envolveram nessas discussões, tanto
teóricos quanto experimentais.
Porém. O H. H. Wills só tinha,
naquele momento, dois eventos mostrando a desintegração (ou decaimento) de um
méson pi em um múon. Serviu para comprovar a descoberta de um (píon) e a
natureza do outro (múon). Mas, mesmo numa época em que a imagem tinha força de
comprovação, dois era um número baixo de eventos, impossibilitando calcular
propriedades dessas duas partículas.
Lattes volta à cena. Vai ao
Departamento de Geografia da Universidade de Bristol, ‘descobre’ o monte
Chacaltaya, na Bolívia, a mais de 5 mil metros de altitude. Consegue algum
dinheiro com a universidade e segue para os Andes com caixas de emulsões nucleares.
Deixa as chapas expostas lá por cerca de um mês e volta para recolhê-las.
Ao revelá-las, em Bristol, a equipe
do H. H. Wills encontra centenas de eventos, sendo cerca de 30 deles
decaimentos completos – ou seja, as duas trajetórias nos limites da emulsão –
do píon em múon. Com base nesses achados, Lattes, Occhialini e Powell publicam
dois artigos no final daquele 1947, com a relação das massas dessas duas
partículas, por exemplo. Outro desdobramento da viagem de Lattes à Bolívia: a
‘descoberta’ de Chacaltaya para a comunidade científica de físicos. E isso teve
desdobramentos importantes para a física no Brasil e na América Latina – mas é
história para outra oportunidade.
A esta altura, o leitor deve estar
se perguntando qual a relação desse mosaico abstrato com a modernização do
Brasil.
À resposta, então.
No final de 1948, depois de
palestras e uma visita ao físico dinamarquês Niels Bohr (1885-1962), em
Copenhague, por conta da repercussão da descoberta do píon, Lattes pôs seu
plano em ação: ver se o então maior acelerador do mundo, no Laboratório de
Radiação, na Universidade da Califórnia, em Berkeley, poderia produzir píons.
O brasileiro chegou a Berkeley no
início de 1948. Cerca de 10 dias depois, trabalhando com o norte-americano
Eugene Gardner (1913-1950), indicou a presença de trajetórias características
de píons nas emulsões nucleares.
A produção por máquina (ou
artificial) do píon teve enorme repercussão nos EUA. Razão principal: foi a
solução de uma situação que já começava a ficar constrangedora para o
idealizador daquele equipamento, Ernest Lawrence (1901-1958), Nobel de Física
de 1939, que havia enterrado no chamado sincrociclótron uma pequena fortuna
para época (US$ 1,7 milhão), dinheiro obtido junto ao governo e à iniciativa
privada dos EUA. O acelerador, afinal, havia sido construído para produzir…
píons. Mas, em quase um ano e meio de funcionamento, aquela lasca específica de
matéria, objeto do desejo de teóricos e experimentais, teimava em não dar as
caras por lá.
Lattes personificava, naquele
momento, nas palavras do historiador da ciência Peter Galison, a transferência
de uma técnica da Europa – onde ela havia nascido e se desenvolvido nas últimas
quatro décadas – para os EUA, onde ela ainda engatinhava.
A confirmação de que o homem podia
produzir píons mostrava – e isso é importante – que a tecnologia empregada no
sincrociclótron (estabilização de fases, no vocabulário da física) funcionava.
E, com ela, seria possível construir máquinas maiores – está aí, a meu ver, a
raiz das dezenas de aceleradores de partículas que inundaram os EUA a partir da
década de 1950.
Com a desculpa de que havia
produzido o píon, mas não sabia bem por quê, Lawrence arrancou milhões da
poderosa (e rica) Comissão de Energia Atômica dos EUA. E o gigantesco Bévatron,
muito mais potente que o sincrociclótron, entrou em funcionamento em 1954, para
produzir antimatéria.
Lawrence sempre ‘vendeu’ o píon com
um tipo de salvador da humanidade, prometendo que a partícula não só combateria
o câncer, mas também daria origem a novas fontes de energia (intra)nuclear e
tecnologias inovadoras para bombas nucleares (a dita bomba mesônica). A
imprensa norte-america reagiu a isso, cobrindo amplamente a produção do píon,
comparando (sem modéstia) o feito a uma nova descoberta da América. O New
York Times foi taxativo: resultado mais importante da física daquele 1948.
Os astros da vez eram Lattes e Gardner – este morto precocemente. Capa de
revistas semanais, ensaios de fotos para a prestigiosa Time-Life,
reportagens do NYT, coletivas de imprensa, palestras…
A gratidão de Lawrence pode ser
medida por seu gesto: ofereceu gratuitamente ao Brasil um acelerador de
partículas ou a possibilidade de o país enviar técnicos para os EUA para
aprenderem a construir esses equipamentos – que já eram vistos, devido ao
início da Guerra Fria, como tecnologias sensíveis. Para o Brasil, porém, nenhum
desses dois cenários se concretizou. Em um entusiasmo sem fundamentos –
capitaneado pelo almirante Álvaro Alberto da Mota e Silva (1889-1976) –,
resolveu-se, anos mais tarde, por conta própria, construir um acelerador ainda
mais potente que o sincrociclótron. Falhamos fragorosamente. Faltava dinheiro,
equipamentos adequados e recursos humanos especializados.
Há alguns indícios históricos (e não
mais do que isso) de que Álvaro Alberto, ao se contrapor aos planos de doção
e/ou construção de Lawrence, tenha criado uma rusga com Lattes. Reforça essa
hipótese o fato de a imagem que abre este ensaio ter sido feita pelo físico
brasileiro – que pediu a assinatura nela de Powell e Occhialini – para
presentear o almirante. No entanto, virou presente de Lattes a seu grande amigo
Alfredo Marques.
No Brasil, os feitos científicos de
Lattes foram propagandeados pelo físico José Leite Lopes (1918-2006), que viu
no fato de termos “nosso herói da Era Nuclear” – expressão atribuída a Lattes
pelo jornalista e escritor Bernardo Kucinski, que, ainda na década de 1990,
generosamente, me indicou a existência de documentação histórica no H. H. Wills
e fez crescer em mim o interesse pela história contada aqui – a chance de levar
adiante os anseios da comunidade de físicos e de outros cientistas da época:
pesquisa, ensino e dedicação integral nas universidades.
Leite, sempre articulado, reuniu em
torno dele, além de cientistas, militares, artistas, intelectuais, empresários
e jornalistas. Desse movimento, nasceu o Centro Brasileiro de Pesquisa Físicas,
no Rio de Janeiro (RJ), tendo Lattes, aos 24 anos de idade, como seu primeiro
diretor científico. A reboque do CBPF, veio o então Conselho Nacional de
Pesquisas (hoje, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico)
e várias instituições ligadas à estrutura político-admnistrativa da ciência no
Brasil, bem como centros de pesquisa e universidades.
Ciência era parte de nosso projeto
de nação.
Aqueles dois risquinhos alavancaram
a modernidade (científica, pelo menos) do Brasil. Aquela fotografia, a meu ver,
merece, portanto, lugar em nosso (improvável) museu da cultura material do povo
brasileiro.
Para finalizar, um historiador da
física italiano que andou vasculhando os arquivos do Centro para a História da
Ciência da Real Academia Sueca de Ciências, em Estocolmo, onde estão os
arquivos relativos ao Nobel, informou: há lá pasta com etiquetas das quais
constam dois nomes, Gardner e Lattes. É provavelmente resultado da indicação
dos então dois jovens cientistas ao prêmio. Muito certamente, como já foi dito,
lobby do próprio Lawrence e colegas.
Seria grande serviço à história da
ciência desse país saber o que há naquela pasta.
Por Cássio Leite Vieira
Publicado em 08/07/2012, Revista Pittacos.
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